Já há algum tempo, dia após dia, um conjunto de agentes sociais tem agido em conjunto no sentido de desconstituir a universidade brasileira pública de seu significado social. A mídia majoritária é um exemplo. Nela frequentemente são evidenciados comentários depreciativos explícitos e subliminares que visam afetar negativamente o modo como as pessoas vêem essa modalidade de ensino.
Em contraposição, a publicidade inunda as mídias com vídeos e matérias sobre a pujança da contribuição de outras áreas – como uma recente propaganda que apresenta a indústria como a única responsável pelas conquistas nos mais variados campos da vida humana. E há uma campanha na maior rede midiática nacional em que o agronegócio é defendido como a panaceia: “agro é tech, agro é pop, agro é tudo!”, diz a campanha.
O sentido dessas e outras iniciativas é afetar o notório poder simbólico que o ensino superior (ainda) exerce sobre a sociedade brasileira. O motivo é claro: reduzir a capacidade de influência social das universidades públicas. Na prática se está a minguar seu principal ativo diferenciador – a pesquisa, ao mesmo tempo em que são atribuídas a outros agentes as pesquisas com efetiva relevância social. Teria tal operação efeitos práticos? Certamente que sim! Note-se a anestesia quase geral pela qual passa a sociedade brasileira ante o congelamento dos investimentos na educação superior e o corte de verbas para a pesquisa. A indignação parece grassar apenas em nossos corredores, não alçando maiores repercussões.
Mas como explicar o sentido dessas estratégias? Uma das formas de se explicar tal fato é recorrendo ao sociólogo francês Pierre Bourdieu. Segundo ele, illusio é um fator que faz com que as pessoas tenham aderência a algo por acreditar que vale a pena participar daquele jogo social. Tal fator é imprescindível para considerar relevante investir nesse jogo e participar do mesmo, pois se trata de um “jogo que merece ser jogado” e que seus alvos merecem ser perseguidos. Essa recursividade alimenta as estruturas mentais dos agentes e as estruturas objetivas do espaço. Em outros termos, essa cumplicidade relacional entre a relevância social de um objeto e os interesses de agentes é que tornam algo efetivamente importante ou indiferente.
Há iminente possibilidade de ocorrência de cortes de recursos que afetarão a continuidade da pesquisa no Brasil ou a reservará apenas aos que podem praticá-la sem apoios financeiros – as classes sociais economicamente privilegiadas e em cursos alinhados com o poderio econômico.
Tais iniciativas confluem com os efeitos da deslegitimação social de pesquisadores brasileiros que ousam sobreviver enquanto tais em terras tupiniquins. Ilustrativa das dificuldades atualmente acentuadas, é a história do paranaense Rodrigo Fernando Moro Rios, ex-graduando de Ciências Biológicas, Mestre e Doutor em Zoologia pelo Setor de Ciências Biológicas da UFPR. Na reportagem publicada na BBC em 18 de julho, o próprio título descreve a sua problemática: “Após pós-doutorado na Inglaterra, biólogo vira figurante e tenta bico de modelo nu para se sustentar no Brasil”. Na reportagem, Rodrigo menciona que desde que retornou ao Brasil em 2016 trabalhou como garçom, barman, entregador, além das ocupações mencionadas no título. Isso porque ainda tem encontrado apenas oportunidades laborais esporádicas diretamente relacionadas à sua área de formação.
Em síntese, tomadas em conjunto, estão na atualidade sendo depreciados concomitantemente o valor dos estudos acadêmicos e da formação superior, o que atinge em cheio o desejo do jovem comum de participar desse empreendimento.
É como expressou o Reitor da UFPR, Ricardo Marcelo Fonseca na última semana: “Ciência e tecnologia não é assunto só de pessoas com jalecos e que habitam em laboratórios. Estão ligadas àquilo que de mais básico circunda nossas vidas, como as condições para melhorar nossa saúde, para aumentar nossa longevidade, a qualidade de como nós vivemos, melhorar aquilo que comemos, boa parte daquilo que produzimos e consumimos. Mas também como pensamos, como sentimos, como nos organizamos em sociedade, como podemos viver de maneira mais solidária e mais tolerante e com mais respeito aos legados civilizacionais que são nosso patrimônio”, afirmou.
Dia 9 agosto foi o Ato de Luto pela Ciência, pela Universidade Pública e pelo Futuro. Nesse evento ficou reiterada a relevância da explicitação clara do papel do ensino superior na configuração de valores não apenas desenvolvimentistas, mas também de fonte de sentidos civilizatórios para a configuração de uma sociedade menos subalternizada e desigual.
Por Francine Rocha / ASPEC
Imagem representa o silenciamento de vozes e liberdades. Escultura: Goto. Foto: ASPEC.